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sexta-feira, 22 de outubro de 2010

O REI COMPLETA 70 ANOS, ENSINA AOS AMERICANOS QUE HÁ MUITO MAIS ARTE E PAIXÃO NO FUTEBOL DE BOLA REDONDA

Pelé recebe troféu de Esportista do Século em Paris - Foto Anibal Philot / Agência O Globo

Duas verdades os americanos não entendem. A primeira, a paixão que o futebol (para eles, soccer) desperta em nações de raças, hábitos e culturas tão diferentes como Alemanha, Itália, Japão, Camarões, México e, naturalmente, Brasil. A segunda, eles mesmos permanecerem imunes a esta febre tão universal quanto contagiosa. Afinal, por que um país com sua tradição esportiva, recordista de medalhas olímpicas nas mais diversas modalidades, resiste tanto ao futebol de bola redonda (e não oval, como a do seu football)? Os que se ocupam da questão nos Estados Unidos, e não são poucos, chegam a uma resposta para as duas perguntas: num país onde a popularidade cresce em torno do extraclasse, do superstar, do ídolo, falta ao futebol um Arthur Ashe, um Jack Nicklaus, um Steve Carlton, um Mark Spitz, um Muhammad Ali, para só citar os heróis de agora. Falta, numa palavra: Pelé.
Os americanos começam a pensar seriamente no futebol entre as Copas do Mundo de 1966 e 1970. Na primeira, acompanharam de longe as emoções vividas na Inglaterra, cuja rainha foi pessoalmente entregar ao capitão Bobby Moore a taça de ouro, pequena e feia, pela qual lutavam mais de cem países filiados à Fifa. Na última, no México, os americanos viram surpresos a seleção de Israel conseguir o que a deles era negado desde 1950: uma vaga entre os 16 finalistas de uma Copa do Mundo.
Entre as duas disputas, e antes de encontrarem a resposta, vários de seus estudiosos saem pelo mundo tentando entender o fenômeno futebol. Técnicos, dirigentes, economistas, cientistas sociais, atentos ao interesse cada vez maior das grandes empresas (a Warner Communications, por exemplo) em investir nos esportes, entram em ação.
Um desses estudiosos, o sociólogo Keith Botsford, escolhe o Brasil para suas pesquisas. E, no Brasil, o estádio de Vila Belmiro para ver o Santos. Fica tão impressionado com a aura, a plasticidade, o significado, a riqueza do jogo - e com o personagem que sintetiza tudo isso - que escreve longo ensaio, traduzido no Brasil como "Vinte e dois homens e uma bola". São dele estas conclusões:
"A capacidade de criar tais situações (um gol, um lance perfeito, que nem os companheiros de equipe esperam) - em contraposição às vantagens obtidas quando uma delas simplesmente acontece - é que distingue o gênio do futebol. É exatamente como um repentino arranjo de palavras, e sentimentos que cria a verdadeira poesia. Para o escritor, a linguagem é tão obstinada quanto a mais teimosa defesa. Um Pelé, por conseguinte, é para o futebol o que Shakespeare foi para a poesia: depois de sua passagem, a arte, o jogo, nunca mais serão os mesmos".
Exagero? Não para os americanos do New York Cosmos, o time bancado pela Warner que, no dia 2 de junho de 1975, contrata Pelé por US$ 7 milhões.
A conquista da América
Há quem ache absurdo o Cosmos investir tanto dinheiro num ídolo "aposentado". Sim, porque, à essa altura, Pelé já se despediu do futebol. Primeiro, da seleção brasileira, em 18 de julho de 1971, num amistoso com a Iugoslávia no Maracanã: 2 a 2, nenhum gol seu. Emocionou-se com o apelo dos torcedores em coro: "Fica! Fica! Fica!". E logo começou a sofrer pressões para voltar atrás. Por que não esperar até depois da Copa do Mundo de 1974? Pelé resiste. Uma resistência que dá margem a todo tipo de especulações, uma delas associando sua posição à uma negativa do Governo de aliviar-lhe o imposto de renda. O certo é que, por mais três anos, continuou jogando pelo Santos, ao qual deu adeus em 2 de outubro de 1974 (portanto, depois da Copa), num jogo contra a Ponte Preta: 2 a 0, nenhum gol seu.
Assim, é mesmo um profissional aposentado que o Cosmos contrata. O dinheiro, evidentemente, pesa, mas Pelé acrescenta outro motivo para justificar sua volta aos gramado: "Se o soccer virar futebol, já terá valido a pena".
Não chegará a tanto, mas quase. Os americanos já conseguirão vaga em finais da Copa e suas mulheres chegarão ainda mais longe como campeãs mundiais e olímpicas. Não há como negar a Pelé a descoberta do futebol pelo americano. Ídolo também no Cosmos, beneficia-se da força do marketing que move o clube para crescer como personalidade mundial. Ganha por isso grande festa de adeus em Nova York, com direito a meio jogo pelo Santos, meio pelo Cosmos, hino, discurso, estátua e citação em canção de Caetano Veloso: "Pelé disse love, love, love..".
Mas ele já era ídolo no mundo inteiro, antes do Cosmos, e jamais deixaria de ser, quando sua personalidade, seu carisma, já não mais dependerem do que fizer com a bola nos pés. Na América, o megalômano Muhammad Ali pode abrir exceção em seus autoelogios e dizer "Somos (eu e Pelé) os maiores do mundo", mas em toda parte a regra é reverenciar Pelé. O testemunho de Pedro Bial, como correspondente internacional, diz muito. À simples menção do nome mágico, abrem-se portas, fecham-se obstáculos, quebram-se galhos, desembaraçam-se ciladas. Em todos os campos, no do esporte, no da política, no da diplomacia, no das artes.
É verdade que, antes do Cosmos, Pelé já era ídolo em terras mais distantes. Com o Santos, atuou em quase todos os países africanos, onde era tratado com honras reais. Nesses dias, era feriado. Há registros, feitos na época por agências internacionais, de incrível façanha de Pelé no Congo. As tensas relações entre Kinshasa e Brazzaville, próximas de uma luta armada, interromperam os serviços de transporte no país em dia de jogo do Santos. Pelé, vestindo a camisa branca com o 10 nas costas, foi usado para convencer os dois lados a uma trégua que permitiu ao Santos chegar ao local do jogo, de barco, escoltado por soldados de parte a parte. Terminado o jogo, a briga continuou.
O atleta de todos os tempos
Quando a seleção se concentrou em Guadalajara, para a Copa do Mundo de 1970, a cidade parou. Nos dias de jogos-treinos, antes da estreia, via-se pela cidade um cartaz dizendo: "Hoy no trabajamos porque vamos a ver a Pelé". Dois anos antes, Bogotá já havia passado pelo mesmo quando o Santos fez em El Campín um amistoso com a seleção olímpica colombiana. Uma discussão entre os jogadores resultou na expulsão de Pelé. Mas, no intervalo, dirigentes esportivos e policiais foram informar aos brasileiros que Pelé tinha de voltar. O público o exigia. O árbitro? A pedidos, já fora substituído pelo bandeirinha.
A fama, a admiração vinda de todos os tipos de fã, do mais desconhecido torcedor ao mais imponente chefe de estado, tende a se eternizar. Cinco anos após abandonar o futebol, já é eleito o Atleta do Século pelo jornal francês "L'Equipe", com 178 votos contra os 169 do lendário atleta americano Jesse Owens. Três anos depois, 650 jornais ingleses realizam pesquisa semelhante e mais uma vez o Atleta do Século é Pelé.
Em 1996, empresa francesa com filiais em quatro outros países, volta a perguntar: "Qual foi o maior esportista do século XX?". É o novo tri de Pelé, à frente do ciclista espanhol Miguel Induraín, cinco vezes vencedor da Volta da França. Em 1997, jornais ingleses se limitam a escolher o melhor jogador de futebol de todos os tempos, com votos de 500 mil pessoas representando 110 países. Vence Pelé. Diego Maradona, desde então, põe em dúvida a legitimidade desses concursos, que teimam em não reconhecer sua primazia. Mas, no fundo, no fundo, como todo argentino que gosta de futebol, ele sabe com quem está a verdade.
FONTE: AGÊNCIA GLOBO

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